quinta-feira, 31 de maio de 2012

A insanidade da cereja

Você já deve ter tido a experiência de calçar um sapato apertado. Depois de algum tempo você se esquece de que o está utilizando e vai viver seu cotidiano; isso só é possível porque o inconsciente existe.
Neste tempo em que permaneceu com os sapatos, completamente esquecido deles, você acredita que nada em si mudou: Fez tudo o que precisa fazer da mesma maneira de sempre. Um observador atento, no entanto, notaria que a sua irritabilidade esteve exacerbada, que seu modo de andar estava desarmônico e que você esteve menos paciente e atencioso com as pessoas do que é o seu comum. Você não percebeu nada.
O tornar algo inconsciente, neste contexto, é então uma resposta que damos ao conflito entre nosso bem estar físico (estar descalço, usar pantufas ou tênis) e a nossa necessidade de aceitação social ("vão me achar tão elegante com esses sapatos"). Note que o conflito não se desfaz nem suas manifestações deixam de ser percebidas por outrem: ao fingir que não estamos sentindo dor, apenas a tornamos mais e por mais tempo suportável para nós mesmos. E o mesmo se dá com nossas dores emocionais.
Dores emocionais são esquecidas, ou seja, excluídas da consciência de quem a sente, num mecanismo de proteção bastante infantil. Observem crianças que diante de algo que lhes é desagradável fecham os olhos como se não ver o perigo fizesse com que ele deixasse de existir...
Ao nos protegermos do sofrimento, porém, criamos uma barreira em nossos sentidos que também nos impede de perceber os estímulos agradáveis, prazerosos. Assim sendo, precisamos de cada vez mais para sentir cada vez menos; daí as perversões sexuais, os esportes radicais, os chicletes com gosto de cereja insana...
Num mundo em que as necessidades fundamentais da pessoa são negadas, vive-se como quem tem sapatos apertados implantados na alma. Neste mundo, um chiclete sabor cereja não tem vez. É preciso uma cereja louca, desvairada pelo desespero de estimular nossas bocas carentes do seio materno, bocas anestesiadas pela dor de chorar seu abandono no berço da solidão.


(Débora Damasceno: blog:-ossentidosdoprazer.blogspot.com)